O desvio de armas e munições dos quartéis das polícias e do Exército para facções criminosas, clubes de tiro e milícias virou rotina. Na segunda-feira passada, por exemplo, o Tribunal de Justiça da Bahia negou a soltura de um sargento da Polícia Militar, de 52 anos, preso em flagrante dias antes, em Salvador, com três pistolas que seriam vendidas a traficantes.
O nome do policial só deve ser divulgado após o primeiro júri, mas, em instâncias superiores da Justiça, não faltam réus com identidade revelada, acusados de envolvimento em crimes semelhantes.
De granadas de luz e som da Presidência, como as utilizadas para dispersar multidões, a fuzis da Polícia Federal, o mercado ilegal de armamento vem se sofisticando cada vez mais. Um dos cooptados foi o sargento Marcelo Rodrigues Gonçalves. Cedido pelo Corpo de Bombeiros do Distrito Federal ao GSI (Gabinete de Segurança Institucional), ele despachou, em 2018, balas de fuzil e granadas da guarnição do Exército no Palácio do Planalto para pontos do Comando Vermelho, no Rio.
O caso de Gonçalves é um dos 15 inquéritos do STM (Superior Tribunal Militar). Os processos revelam o esquema que começa com a cooptação de militares de baixa patente, passa por oficiais e termina na cúpula de organizações criminosas. Só esses processos indicam que pelo menos 200 mil balas de fuzis foram desviadas, um corte pequeno no universo de casos investigados.
O capitão Thiago Fonseca Lima e a mulher, a tenente Ana Carolina Pinheiro dos Santos, ambos do Exército, foram presos em maio do ano passado na rodovia Dom Pedro I, em Atibaia (SP), com 1.398 projéteis calibre 5,56 no assoalho do carro, depois de abastecerem clubes de tiro em Olaria, região de milícias do Rio. Thiago cumpre prisão domiciliar e Ana Carolina está em regime aberto.
Para defender o casal, o advogado André Rodrigo do Espírito Santo mergulhou em casos julgados na Corte sobre desvios de armas e munições. “Há uma falha no controle dessas munições, aí. É algo que tem de ter uma segurança muito maior do que eles utilizam”, disse.
As investidas do mercado ilegal de armas são conhecidas do comando do Exército. A reportagem obteve cópias de ofícios da instituição militar ao TCU (Tribunal de Contas da União) e ao Ministério Público Federal, além de documentos internos que mostram a preocupação da Força, nos 15 meses do governo Jair Bolsonaro, em cessar os desvios de armamentos e munições. Em reuniões no quartel-general de Brasília, oficiais deixaram claro o interesse em garantir um controle mínimo não apenas de seu armamento, mas também do comércio privado.
Diante da desorganização do setor e de pressões, o Colog (Comando Logístico do Exército) montou um grupo para criar uma legislação de controle de armas e munições. O esforço de um ano da comissão chefiada pelo general Eugênio Pacelli Vieira Mota, porém, sofreu um revés em 17 de abril, quando as portarias 46, 60 e 61, preparadas pelo grupo, foram revogadas antes de entrarem em vigor, a pedido de Bolsonaro.
Numa transmissão ao vivo na internet, na véspera, Bolsonaro recebeu pedidos do lobby das armas para cancelar as normas. A possível interferência do presidente em atos exclusivos do Exército é agora alvo de investigação do Ministério Público Federal. O Exército tem afrouxado o trabalho para garantir regras de rastreamento e controle de munições.
Bancos
A pressão por mais controle de armas e munições vem especialmente do setor bancário. De 2015 a 2018, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Segurança Privada registrou 361 atentados a carros-fortes no País. São quadrilhas que manejam explosivos desviados de pedreiras e armamento de uso restrito.
Ao investigar o ataque a um veículo de uma transportadora de valores na região metropolitana de João Pessoa, na Paraíba, em 2018, a polícia também encontrou 1,8 mil munições. A Companhia Brasileira de Cartuchos, fabricante dos projéteis, informou que as balas haviam sido furtadas de polícias de Pernambuco, Paraíba Distrito Federal e São Paulo.
Criado para treinar pracinhas que lutariam na Segunda Guerra, o quartel do 11º Grupo de Artilharia de Campanha (11.º GAC), no Rio, não foi poupado pelo esquema que abastecia criminosos da comunidade do Chapadão. Num habeas corpus negado, em 2019, o civil Allan Malaquias de Oliveira confessou que intermediava a venda de munições calibre 7,62 mm entre militares e traficantes.
O inquérito não aponta, no entanto, o número exato de munições desviadas nem o nome de envolvidos. Esta lacuna aparece nos demais processos analisados pela reportagem. Os furtos só costumam ser descobertos quando o armamento já está nas mãos do crime. O caso que cita Malaquias só foi desvendado porque, ao passar de carro na Baixada Fluminense, ele foi parado pela PM.
Entre 2015 e 2018, um total de 1.049 armas foi desviado da Polícia Civil do Rio, segundo relatórios analisados pelo Instituto Sou da Paz, a pedido do Estadão. A esse arsenal se juntam as armas e munições desviadas dos batalhões das Forças Armadas e da PM.
Em abril do ano passado, uma perícia no celular do ex-policial Orlando Curicica mostrou mensagens trocadas entre ele e suspeitos de atuar como milicianos. O laudo foi anexado às investigações do caso Marielle Franco (PSOL) e Anderson Gomes e revelou que Curicica negociava armas para favelas da zona oeste do Rio. Ele pretendia comprar uma pistola Glock, apreendida na Cidade de Deus, que seria desviada do Grupamento Tático de Jacarepaguá.
Outro inquérito na Justiça Militar apura o uso de munições restritas ao Exército por milícias em São Paulo. Projéteis de um lote desviado da Polícia Federal, o UZZ 18, foram usados em pelo menos três casos de repercussão nacional: os assassinatos da juíza Patrícia Acioli, no Rio, em 2011, e de 23 pessoas, em chacinas, em 2015, em Osasco, Itapevi e Barueri (SP).
O lote roubado possuía 2,5 milhões de munições, sendo 1,85 milhão de calibre 9 mm, e dali também teriam saído as balas que mataram Marielle e Anderson, no Rio, em 2018. Num processo que chegou neste ano ao STM, o tenente-coronel Alexandre de Almeida, ex-chefe do Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados da 1ª Região Militar, do Exército, foi preso, em abril de 2019, por desviar 110 armas para um clube de tiro na Serra, no Espírito Santo.
O setor comandado por ele era responsável pelo controle de armas naquele Estado e no Rio e fiscalizava clubes de tiro, comércio de explosivos e atividades de caçadores, atiradores e colecionadores. Com atuação no Rio, Almeida foi responsável por assinar o certificado de colecionador de Ronnie Lessa, o sargento reformado da PM acusado de envolvimento no assassinato de Marielle e Anderson.
R7