Nesta quinta-feira, dia 18, faz exatamente um ano que andei sem máscara pelas ruas. Foi também nessa data que entrei pela última vez em um ônibus e viajei de metrô. Eu ainda não sabia, mas era meu penúltimo dia de trabalho presencial na empresa em que atuei durante 23 anos. No dia seguinte, fui e voltei de carro, com o companheiro Paulino Jose Dos Santos. Depois disso, minha atividade laboral foi convertida ao regime home office e, após um mês, fui desligada da firma, sob a alegação de que era preciso conter custos para fazer frente à queda de receita associada à crise sanitária.
Fora do mercado de trabalho e sem a necessidade de deslocamentos diários, minhas saídas, desde então, se resumem a idas esporádicas a médico e dentista. Vivo, há um ano, numa espécie de prisão domiciliar, quer esteja em Salvador ou em Vera Cruz, na Ilha de Itaparica, minha segunda residência.
Há um ano, o clima era mais de ansiedade do que propriamente de medo. Em 16 de março de 2020, a Bahia confirmava o décimo caso de infecção pelo novo coronavírus. Ainda não se falava em mortes aqui no estado. Oficialmente, o primeiro óbito por covid-19 em solo baiano foi registrado no dia 29 e teve como vítima um homem de 74 anos, que estava internado em um hospital privado de Salvador. De lá pra cá, são quase 14 mil pessoas que perderam a batalha para a doença – até ontem, quarta-feira, dia 17, boletim da Secretaria Saúde do Estado contabilizava um total de 13.589 vidas perdidas.
Foi em 16 de março de 2020 que percebi a gravidade do momento. Nessa data, o governador Rui Costa e o prefeito ACM Neto instituíram uma série de medidas destinadas a reduzir a circulação – desde o primeiro momento, preconizada como a mais importante orientação para conter o avanço da covid-19. Entre outras determinações, os decretos suspendiam, inicialmente por tempo limitado, cultos religiosos, partidas de futebol, shows e demais eventos com público superior a 50 pessoas. Escolas, academias de ginástica, parques, museus e teatros também estavam impedidos temporariamente de funcionar. Dias depois, as restrições alcançavam os shoppings e outros setores considerados não essenciais.
O país começava a viver em estado de tensão. Eram muitas as dúvidas, mas ainda não se tinha a exata dimensão da tragédia que viria a seguir. No Brasil, o primeiro anúncio de morte por covid-19 foi feito em 17 de março. Tratava-se do aposentado Manoel Messias Freitas Filho, 62 anos, que morreu no dia anterior no Hospital Sancta Maggiore, em São Paulo. Esse registro seria corrigido três meses depois: exames laboratoriais constataram que o primeiro caso fatal datava de 12 de março, no Hospital Municipal Doutor Carmino Cariccio. também na capital paulista, e teve como vítima uma mulher de 57 anos.
Na contramão de toda a tensão, enquanto o país começava a se dar conta da letalidade do Sars-CoV-2, o presidente da República, se dedicava à prática do negacionismo. Em 9 de março, num dos primeiros comentários públicos sobre o assunto, acusou a imprensa de exagerar sobre a gravidade da doença. “Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus”, disse em evento em Miami, nos fazendo passar vergonha perante o mundo. Pouco mais de duas semanas depois, no dia 24, quando mais de dez brasileiros já haviam perdido a batalha para a doença, ele volta à carga. Dessa vez, critica o fechamento de escolas e atividades comerciais. Não satisfeito, incentiva o desrespeito às normas sanitárias e compara a contaminação por coronavírus a uma “gripezinha” ou “resfriadinho”.
Entre 11 de março de 2020, quando Tedros Adhanom, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), conferiu à covid-19 o status de pandemia – em razão da velocidade de disseminação do vírus – e os dias atuais, perdemos amigos, amores, espaço, direitos, dignidade. Há mais de um ano, estou privada de abraçar meu filho Leonardo Aguiar , minha neta e minha nora Juliana Sousa que residem em outro estado. Há mais de um ano não tenho contato presencial com tantos outros de meus mais caros afetos. Celebramos aniversários e datas importantes via internet. Reinventamos modos e meios de mantermos a conexão afetiva… Mas, pior que olhar para trás e contabilizar todas as perdas, é olhar para a frente e não enxergar um horizonte próximo.
Lembro que em 23 de março do ano passado, postei um texto aqui falando de incertezas e impotência. Definia meus sentimentos com uma comparação: era como se me encontrasse à beira-mar diante de um tsunami em formação. Hoje, quase um ano depois daquele post, vejo o rastro de destruição produzido pela onda gigante. Estamos nos aproximando de 300 mil mortos, temos desemprego em alta (de acordo com o IBGE, quase 14 milhões de pessoas ficaram sem emprego no período) e explode a falência de empresas (dados da Boa Vista Serviços apontam que, em dezembro de 2020, pedidos e falências decretadas dispararam 38,1% e 30,4%, respectivamente).
Como se não bastasse todo esse saldo trágico, crescem a desagregação familiar, o adoecimento da alma e um exército de sequelados. Mas a onda gigante não cessa de se recompor. Quando pensávamos que o advento da vacina traria um alívio à dor, descobrimos o outro lado da moeda: não vamos nos imunizar na velocidade que a crise exige, a cada dia surgem novas variantes do vírus, o sistema de saúde está em colapso.
Há um ano, eu imaginava que bastava boiar. Desde que a cabeça se mantivesse fora da água, dava para respirar. Hoje, não sei até quando vou conseguir resistir…
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Jaciara Santos é Jornalista