Quando a pandemia ficou mais evidente e foi anunciado o isolamento social, Peter se recuperava de uma pequena intervenção cardíaca. Já se preparava para voltar a trabalhar no Polo Petroquímico, mas, estava agora no grupo de risco e foi obrigado a permanecer em casa. Cumprindo uma espécie de “prisão domiciliar”, ele até suportou bem nos primeiros 30 dias, mas depois de maratonar todas as séries interessantes e não suportando mais os filmes reprisados na Tv por assinatura, começava a variar momentos de humor. Flavinha, a quem chamava de “Mô”, começava a ficar preocupada. Muitos dias ele só conseguia dormir com o uso de calmantes naturais, que já não faziam mais efeito.
Peter ficava agora amuado sentado no sofá, que ganhara o contorno das suas nádegas, com o olho vidrado na tv. Via todos os jornais. Se irritava com a política, com os governos, com a corrupção na compra de respiradores. Chegou a atirar um copo plástico na tela da tv numa aparição do ministro Weintraub, a quem chamava de “analfabeto incômodo”. Flavinha estava preocupada, mas evitava de todas as formas que seu “Mô” saísse, tivesse contato com outras pessoas. Temia que se contaminasse com a Covid e que isso lhe trouxesse problemas mais sérios de saúde. Lavava sacos, colocava o pão no forno com a temperatura elevada, cuidava de tudo com o maior zelo. Peter merecia. Até mesmo as crianças, na verdade dois adolescentes (Yasmin e Joca), que vez ou outra saiam de casa para ir ao mercado ou à padaria, foram proibidas de ter contatos mais carinhosos com o pai sem usar máscaras ou mesmo higienizar mãos e até o rosto.
Peter continuava amuado, pouco comia, bebia, falava só o necessário e apresentava um semblante triste, depressivo. Nunca mais os babas, as rodas de amigos, o trabalho social na igreja, as caminhadas na orla, nem teatro (que tanto gostava), nem os cuidados excessivos com o carro, que mantinha ainda com cheiro de novo, mesmo após um ano de uso.
Flavinha acordou de madrugada. Peter não estava ao seu lado. Poderia ter ido ao banheiro, beber água, talvez até a insônia o levara a fazer uma “boquinha” noturna. Esperou. Nada. Preocupada, levantou, foi procurá-lo no banheiro, depois na cozinha, quarto dos filhos, até na lavanderia. Nada. Já estava chorando muda, na ânsia de acordar os filhos e iniciar as buscas. Ouviu latidos incessantes dos cachorros na vizinhança. Correu para a janela do 11º andar. Os latidos eram fortes.
Lá embaixo, na área entre as garagens, viu inicialmente um vulto girando, correndo, pulando. Dava para ouvir, baixinho, música saindo das portas do Jeep Renegade branco. Acostumou os olhos à pouca e luz e teve a certeza. Era Peter. Ele dançava sozinho, balançava a cabeça como se estivesse num show de rock e deu para notar que cantava Rock and roll all night, uma das suas preferidas do Kiss. Ao mesmo tempo, lavava o carro, os tapetes. Sorria. Os cachorros latiam. Flavinha ficou feliz em ver seu “Mô” novamente feliz. Até os gatos vira-latas da vizinhança subiram aos telhados para aplaudir a performance!
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