Um estudo sobre as audiências de custódia do estado de São Paulo mostra que a omissão de juízes, promotores, defensores públicos e médicos peritos diante de casos de tortura e maus-tratos relatados por presos prejudicam a investigação de episódios de violência policial ocorridos no momento da detenção.
Autora do estudo, a organização não-governamental Conectas Direitos Humanos apresentou a denúncia hoje (20) ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ), ao Ministério Público (MP) do estado e à Defensoria Pública.
“A principal conclusão é que a atuação deles [das instituições que integram o sistema de Justiça] perpetua a violência policial, porque são dados encaminhamentos meramente protocolares ou não é dado nenhum encaminhamento às denúncias de tortura e maus-tratos que são feitas nas audiências [de custódia]. A conclusão da Conectas é que isso é uma forma de perpetuação, de manutenção da prática cotidiana da violência policial”, disse a advogada do Programa de Justiça da Conectas, Vivian Calderoni, em entrevista à Agência Brasil.
Para produzir o relatório Tortura Blindada, a entidade acompanhou 393 audiências de custódia de casos com indícios de tortura ou maus-tratos, entre julho e novembro de 2015, no Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista. De acordo com a ONG, vídeos e relatos “mostram juízes e promotores justificando agressões, insinuando que o preso estaria mentindo, naturalizando os maus-tratos e negligenciando os testemunhos”.
“A pesquisa revela que em 26% dos casos não houve apuração [de violência], não foi aberto nenhum procedimento. Estamos falando de um número muito alto. Ressaltando aqui que, do nosso universo [393 casos], todos tinham indícios, marcas ou sinais de ter havido violência. Então o esperado é que em 100% deles fosse dado o encaminhamento no sentido de apurar e responsabilizar os autores”, disse a advogada.
Nas denúncias levadas aos três órgãos do estado, a Conectas pede que as condutas apontadas na pesquisa sejam averiguadas e que as instituições promovam melhorias na atuação judicial durante as audiências de custódia. “Nosso objetivo é uma mudança na atuação das instituições no que diz respeito à prática de violência e agressões, tortura e maus-tratos. Queremos uma mudança de protocolo para que a atuação do juiz, dos promotores e defensores seja efetiva no sentido de buscar a apuração desses casos [de tortura e maus-tratos]”, afirmou Vivian Calderoni.
Entre as recomendações às instituições, está a obrigatoriedade por parte do juiz, promotor e defensor de perguntar ao preso se houve violência no ato da detenção.
Audiências de custódia
Um dos principais objetivos das audiências de custódia, que garantem a apresentação das pessoas detidas pela polícia a um juiz em até 24 horas, é justamente combater a tortura e os maus-tratos. As sessões começaram a ser realizadas na capital paulista há dois anos, após parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Segundo informações da Conectas, antes desses instrumentos, hoje presentes em todas as capitais do país, presos provisórios aguardavam meses até a audiência de instrução do caso. “Até lá, eventuais marcas físicas e provas da tortura desapareciam, dificultando a investigação e responsabilização dos envolvidos.”
No estado de São Paulo, a primeira audiência costumava ocorrer de três a cinco meses após a prisão, segundo dados do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). “Isso agravava ainda mais a situação dos presos provisórios, que representam 41% da população carcerária brasileira”, diz a Conectas com base em dados de dezembro de 2014 do Ministério da Justiça.
Na audiência de custódia, o juiz não avalia inocência ou culpa, mas os elementos processuais sobre a prisão em flagrante, além das eventuais ocorrências de tortura e maus-tratos. Após manifestação do MP e da Defensoria – ou do advogado –, o juiz decide se o acusado terá a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva; se responderá ao processo em liberdade; ou se não responderá a processo penal, caso considere o flagrante ilegal.
Se houver suspeita de tortura ou maus-tratos cometidos durante a prisão em flagrante, o juiz pode determinar a realização de perícia e exame de corpo de delito para apuração do abuso, além de instaurar investigação criminal ou administrativa contra o policial acusado.
Atuação dos órgãos
De acordo com o levantamento da Conectas, “em um terço das audiências, os juízes não questionaram os custodiados sobre a ocorrência de violência no momento da prisão, mesmo quando a pessoa apresentava marcas no corpo”.
Entre os promotores, segundo a entidade, a falta de interesse foi ainda maior: “em 80% dos casos em que havia relato de tortura [na audiência], os representantes do Ministério Público não fizeram qualquer tipo de pergunta para apurar a violência. A maioria das intervenções foi no sentido de deslegitimar o testemunho dos presos (60%). Em 42% das ocasiões, os promotores justificaram a agressão ou insinuaram que o preso estava mentindo.”
Encaminhamento de denúncias
O encaminhamento dado pelos juízes aos casos de violência pesquisados pela ONG também foi analisado, o que resultou em “mais uma conclusão preocupante”, de acordo com a entidade. “Muitos relatos de tortura – e as informações sobre as vítimas – estão sendo encaminhados aos batalhões dos policiais suspeitos, colocando em risco a vida dos presos que fizeram as denúncias.”
Em 72% das audiências de custódia, as suspeitas de tortura foram encaminhadas aos batalhões dos policiais suspeitos da violência, para investigação interna. Apenas um caso resultou em abertura de inquérito em delegacia da Polícia Civil para apuração da conduta dos agentes.
“O próprio batalhão policial da região em que a tortura ocorreu – e não a Corregedoria – recebia o vídeo da audiência de custódia, com a voz e o rosto da pessoa presa, colocando-a em posição de vulnerabilidade ainda maior”, denuncia a Conectas.
A advogada Vivian Calderoni acrescenta que a presença de policiais militares dentro da sala onde ocorrem as audiências de custódia é um fator que inibe um possível relato de agressão por parte do preso. “O juiz deveria pedir [que o policial saísse], mas em todos os casos que nós acompanhamos a Polícia Militar estava dentro da sala.”
Respostas
O juiz coordenador das Audiências de Custódia na Capital, Antonio Maria Patiño Zorz, disse que “não há omissão por parte do Judiciário paulista diante de casos de tortura e maus-tratos relatados por presos nas audiências de custódia”. Segundo o juiz, no decorrer de uma audiência de custódia, o preso é ouvido pelo juiz “que dentre suas obrigações, tem o dever de perquirir situações ocorridas no ato da prisão ou do transporte ao fórum para aferir algum abuso”.
Se houver denúncia, o juiz deve determinar que a pessoa passe pelo exame do legista no IML. “Na sequência, a reclamação da pessoa ouvida [gravação e termo de audiência] e o exame de corpo de delito são encaminhados ao setor apropriado no Departamento de Inquérito Policial (Dipo) que forma um procedimento de acompanhamento, supervisionado pelo Ministério Público e pelo defensor, remetendo-se à casa censora da Polícia Civil, Militar e/ou Guarda Civil para apuração do fato denunciado”, respondeu o juiz, em nota.
Zorz acrescentou que “o Ministério Público pode apurar de imediato eventual abuso ou mesmo determinar a instauração de inquérito policial”.
Também em nota, o Ministério Público informou que em 2016 foram abertos 1.409 procedimentos para apuração de eventuais ilegalidades ocorridas durante prisão em flagrante. Em 2017, já foram instaurados 160 procedimentos. Entre os encaminhamentos dados aos casos, segundo a instituição, estão instauração de inquérito policial, envio para Corregedoria competente e arquivamento.
“Vale destacar que, comumente, o preso alega superficialmente na audiência de custódia tortura e maus-tratos eventualmente perpetrados por agentes policiais no momento da prisão em flagrante. Via de regra, não há informações necessárias que permitam a apuração dos fatos, tais como: identificação dos agressores; locais, datas e horários aproximados dos fatos; descrição dos fatos, inclusive dos métodos adotados pelo agressor e a indicação das lesões sofridas; identificação de testemunhas que possam colaborar para a averiguação dos fatos; verificação de registros das lesões sofridas pela vítima; enfim, qualquer elemento relevante para apuração dos fatos e indicação dos responsáveis”, justificou o MP.
Já a Defensoria Pública informou que se reuniu hoje (20) com representantes da Conectas para debater os resultados da pesquisa e disse que o enfrentamento e apuração dos relatos de torturas e maus-tratos contra pessoas presas têm sido “uma preocupação constante dos defensores públicos que atuam em audiência de custódia”.
“A Defensoria espera que o debate fomentado pela pesquisa motive todos os órgãos públicos citados a qualificarem ainda mais suas atuações no enfrentamento à tortura, especialmente por meio de efetivas investigações sobre os elementos fornecidos durante as audiências. A esse respeito, continuará o processo de qualificação de seus protocolos com base nos dados coletados, nos diálogos com especialistas e com debates abertos”, disse o órgão, em nota.
Agência Brasil