Era 1968. O Brasil estava vivendo anos obscuros. A maioria da população sequer sabia do que rolava nos calabouços. O Brasil decepcionou na Copa de 1966. A rainha Elizabeth II viu sua Inglaterra vencer dentro de casa a Alemanha e levantar a única taça que conquistou até hoje.
Talvez para tirar uma onda em cima dos brasileiros, Elizabeth resolveu visitar o Brasil dois anos depois. Leitora de Jorge Amado e apreciadora de Dorival Caymmi e João Gilberto, eis que a dona da zorra toda do Reino Unido também decidiu dar um pulinho na Bahia.
Ela e Philip, o fanfarrão, aportaram o iate real na capital Salvador e fizeram visita de turista de um dia pela soterópolis. Num desses passeios, em pleno Pelourinho, curtindo uma roda de samba com nomes como Camaféu de Oxossi e Riachão, pousou seus olhos de realeza sob um plebeu pescador. Zezinho estava lá, acompanhando a visita da mulher mais poderosa do mundo.
Conhecido na pesca do robalo, Zezinho, com seus 30 e um ou dois anos – a mãe dizia que ele foi registrado um ano depois – era um moreno de cor forte, pele queimada brilhosa. Vestia uma camisa regata surrada, que delineava os músculos construídos na lida, sem o uso de whein protein. Tinha olhos amendoados e o cabelo do tipo sarara.
Elizabeth estacionou os olhos reais por exatos 10 segundos sob aquela figura forte, esguia. Zezinho olhou diretamente nos olhos de sua majestade, naquele momento, com 42 anos e que já tinha na sua prole Charles, o boa vida que um dia viraria rei e teria finalmente que trabalhar.
Dez segundo de troca de olhares. Um filme passou na cabeça da monarca. Uma vida simples, ao lado de homem moldado no balanço do mar. Aquele momento em que a vida passa diante da gente. Leitora de Jorge Amado, imaginou um mundo novo. Um mundo sem as exigências de etiqueta, sem aquele povo chato, cheio das nove horas, empostado. Um mundo onde poderia pisar na terra, na areia. Onde comeria moquecas de frutos do mar, onde não teria obrigações estéticas ao sentar à mesa; onde não precisaria segurar o garfo e outros talheres como se fossem joias preciosas.
Zezinho notou que o olhar de Beth era profundo. Apesar de estar no meio de uma multidão suada sob aquele sol forte de Salvador em novembro, quase Verão, conseguia sentir o perfume daquela dama de pele clara, olhar carismático. Sorriu para ela.
Beth esboçou também um sorrido, mas foi arrancada do sonho por um puxão de Philipe que achava que a rainha cansara em meio a toda aquela gente de pele morena, negra, escurecida pelo sol forte que fazia o príncipe sentir o couro cabeludo fritando.
Dez segundos.
Na passagem do bicentenário da independência do Brasil, a rainha Elizabeth, dias antes de deixar a vida, aos 96 anos, mandou uma mensagem aos brasileiros e lembrou por um momento daqueles dez segundos. De como imaginou uma vida diferente. De como se sentiu plebeia, feliz, sentindo o vento no rosto, nadando na praia de Itapuã; comendo churrasco na laje, ao invés dos banquetes insossos do palácio de Buckingan.
O que poderia ter sido sua vida, não fosse rainha, não fosse britânica, não fosse herdeira do trono mais importante na terra. De como seria feliz ao lado de Zezinho.
(Zezinho também lembra daquele momento. Chegando perto dos 90 anos, ainda está firme e forte ao lado de Zefinha, sua companheira da vida toda. Essa história ele contou inúmeras vezes nas rodas de amigos e familiares. Zezinho virou uma lenda).
(Chicossauro Rex)
Foto: Revista Manchete