Biomédica explica a importância de respeitar as dores, as necessidades e as origens dos pacientes.
Ao longo dos anos a sociedade vem buscando desconstruir padrões de beleza impostos. Entretanto, mesmo com os avanços identitários, as imposições ainda são presentes e moldáveis aos interesses do tempo. Se pararmos para analisar alguns momentos pelos quais já passamos, podemos concluir que certos moldes estão ligados às classes sociais economicamente dominantes, reproduzindo formas e estruturas hegemônicas.
Nos últimos anos, em Portugal, tem se falado de um novo mercado de produtos e práticas estéticas e até cirúrgicas definidas como “étnicas”. Segundo o artigo “A indústria do branqueamento em Lisboa: uma etnografia das práticas e produtos para o branqueamento da pele e seus riscos para a saúde dermatológica”, produzido pelas especialistas antropólogas Chiara Pussetti e Isabel Pires, os profissionais de medicina estética entrevistados definem “étnica” como qualquer intervenção direcionada a alteração de traço “racial”, considerados socialmente indesejáveis conforme padrões de beleza euro-centrados.
Dados estatísticos internacionais vêm mostrando um aumento nos últimos 20 anos. Segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética e a Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos (Asaps), a procura de alterações estéticas “étnicas” aumentou 243% entre 2005 e 2015 em todo o mundo. Esse crescimento é possível devido às rápidas mudanças culturais e a grande repercussão midiática em escala global de imagens consideradas hegemônicas, ou seja, a beleza e o estilo de vida ocidental.
De acordo com Jéssica Magalhães, biomédica esteta e especialista em pele preta, não existem métodos para o embranquecimento da pele. “Existem procedimentos que podem ter como efeito adverso a morte do melanócito, que é a célula que produz a cor da pele. Mas não é saudável ou indicado induzir propositalmente. A melanina é uma proteína de proteção e a ausência dela, como em casos de albinismo, exige cuidados específicos para que não haja danos à saúde”, esclarece a doutora.
Como profissional com 10 anos de experiência, a especialista tem uma opinião formada sobre certos procedimentos que aos poucos tiram a identidade das pessoas, uma vez que, a mesma já demonstrou em outros momentos, a importância da beleza inclusiva no setor.
“A estética há muito tempo tem servido ao propósito de despersonalização, promovendo uma legião de pessoas com características iguais. Acontece que somos múltiplos, únicos, nossas características remetem a nossa ancestralidade e identificam nossa origem. É um erro achar que a beleza pertence a apenas uma característica facial, corporal e/ou capilar. Essa padronização se apoia no processo de formação profissional onde há um parâmetro único de estudo e de procedimento. Não é estimulada a análise personalizada para tratamento.”, ressalta Jéssica.
Ao trazer para a superfície um assunto pouco ou quase nunca pautado, é quase impossível não relacionar o poder da mídia na contribuição dessas práticas. É indiscutível que a televisão, a própria publicidade e até mesmo as redes sociais – essas ainda com mais força – promovem ideias de uma beleza “branqueada”. Por muitos anos a indústria do entretenimento projeta mais mulheres e homens com pele clara do que com pele mais escura.
Dentro desta realidade, a Drª Jéssica acredita que somos extremamente influenciados de forma subjetiva, o que é bem perigoso.”Ao vermos sempre as pessoas de pele clara como belas, admiráveis, bem sucedidas, inteligentes e sempre as pessoas de pele escura como feias, pouco inteligentes e sem chance de sucesso, internalizamos isso. Acreditamos nisso, é muito errado e perigoso! A África, além do berço da humanidade, é mãe de diversas ciências. Temos nossos próprios padrões de beleza. É cruel e desumano fazer-nos acreditar que não merecemos algo por nossa ancestralidade expressa em nossa cor de pele”, pontua.
Drª Jéssica acrescenta alguns pontos que contribuem para que a prática do preenchimento labial ou botox, muito utilizado pelas mulheres brancas, sejam considerados um tabu para as mulheres negras. “Somos socialmente moldadas a não termos cuidado. Inconscientemente não nos sentimos no direito de reservar tempo ou investimento para cuidados, julgando-os como desnecessário ou fúteis. Além disso, não nos vemos como pessoas que realizam esse procedimento, uma vez que nas imagens e notícias não enxergamos mulheres pretas, já alimentamos a crença de que o valor é inacessível, que não é para nós ou que não precisamos. A realidade é que, não só esse mas, todos os métodos são para nós, mulheres e homens pretos”, comenta.
A especialista reforça a importância dos cuidados, alerta sobre os riscos e aborda um questionamento que é crucial sobre o respeito aos procedimentos estéticos, uma vez que precisamos e merecemos de cuidados especializados que não nos descaracterizem e valorizem a beleza ancestral que carregamos.
“Existem riscos diversos à saúde física e psicológica. Ao realizar procedimentos para modificar as características naturais há uma frustração com o resultado e processo, abrindo caminho para dores latentes criadas por uma sociedade que julga os traços negróides. É preciso ter respeito às dores, às necessidades e origens de nossos pacientes. Trabalhamos com uma parte sensível de nossa vida que é a autoimagem, a autoestima, a maneira como nos enxergamos como pessoas e como vamos lidar com o mundo. Ao afetarem negativamente podemos causar danos profundos e irrecuperáveis”,
A biomédica completa que a estética também pode ter o efeito empoderador. “A partir do momento que valorizamos a individualidade, a ancestralidade e a força de cada pessoa que passa por nós, fortalecemos sua relação consigo e com o mundo”, conclui Drª Jéssica Magalhães.